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Jornal do Brasil - Joaquim Levy - Publicado em 09/05/2010

Manuel Pinto de Sousa Dantas foi chamado pelo imperador para formar um gabinete em 1884, com a missão de avançar na resolução do problema da escravidão. O projeto rapidamente apresentado pelo Conselheiro Dantas foi um divisor de águas. Apesar de ser em boa parte rejeitado, precipitou o 13 de maio.
Para o projeto, foi fundamental a participação de Rui Barbosa, o que lhe custou o mandato de deputado, pela polêmica criada por alguns dos aspectos aparentemente anódinos da proposta. Especificamente, o projeto de Barbosa previa que seriam libertos todos os escravos com omissão de matrícula ou divergência em relação ao seu domicílio legal. Esse simples acerto de cadastro proposto por Barbosa forçaria a imediata liberação de todos os beneficiados pela Lei do Ventre Livre de 14 anos antes, assim como dos filhos de escravos aportados no Brasil após a extinção do tráfico em 1831, visto nenhum ter matrícula. Também desmontaria o esquema de venda informal de escravos do Norte para a zona cafeeira. Como em tantos casos, o que parecia um desinteressante exercício de conformidade legal teria enorme poder transformador.
Um segundo aspecto da lei foi a criação de um sistema de assistência ao escravo liberto por ter atingido 60 anos, ou pelos motivos acima. Essa assistência nas linhas da que, de tempos em tempos, era ofertada a imigrantes previa a formação de colônias agrícolas apoiadas pelo Estado, com transferência da terra para o liberto após certo prazo. A resistência ao projeto foi enorme, provocando a dissolução do Parlamento e novas eleições, em que os escravocratas entraram com tudo. A reação foi uma mensagem "estilo Zagalo" ao imperador, que apoiava Dantas, na base do "terão que nos engolir". O projeto foi diluído pelo novo gabinete, que só manteve a liberação dos sexagenários (sem assistência pós-cativeiro).
Ainda assim, o primeiro-ministro Saraiva pediu demissão de surpresa, na véspera da votação da Lei, que só ocorreu no arquiconservador gabinete Cotegipe. Apesar desse desgaste, o imperador não desistiu do apoio à causa abolicionista, contrariando interesses que acabaram desaguando na República em 1889; um pouco como a insistência do rei George na questão fiscal levou à independência americana. O episódio ilustra facetas do Brasil que ultrapassam o tempo, além do fato de a política poder tomar rumos imprevistos - um pouco como naquela ópera de Massenet, em que a moça, que ia para o convento, acaba virando a jovem mais badalada de Paris.
Em particular, a resistência ao projeto de Dantas joga luz no papel que lacunas nas leis têm na negação de certos direitos. Por exemplo, uma das razões por que o Brasil só teve um Código Civil em 1917, vivendo até lá com uma mistura de regras tão antigas como o Paço de Guimarães e as Ordenações Filipinas, é que um Código Civil acabaria com a ambiguidade da possibilidade de cidadania dos negros, garantida pela Constituição do Império, face à realidade da escravidão.
As velhas normas permitiam, entre outras coisas, o escravo comprar sua própria liberdade. Mas seu exercício era precário. E nem todo o brilhantismo jurídico e a coragem de Antonio Rebouças - herói mulato da Independência, um dos advogados mais demandados do país e pai do engenheiro Rebouças - conseguiram levar à codificação desse e de outros direitos de interesse difuso. Os mais céticos diriam que isso está ligado ao caráter romântico ou generalista da nossa sociedade: na economia, preocupamo-nos com o apocalipse de Malthus ao invés de aplicar o rigor e as vantagens de Ricardo; nas leis, o mesmo.
Mas os últimos 15 anos mostram que, mesmo com pausas, é possível avançar na institucionalização dos direitos, fazendo valer a noção de que eles não são favores nem precisam inviabilizar a economia. Os processos são complexos - às vezes dependendo de líderes individuais. Mas, felizmente, nossa História não precisa ser lida como um roman à clef.
 
 
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